"Ele colocou o livro dentro da jaqueta de couro, fechou e disse: "Pronto, Patti, agora você e Robert não irão mais se molhar." Lembrou-se de uma gata que tivera, Chic, que o escolheu, o seguiu e foi recolhida e, assim como o Patti e Robert, abrigada no interior de uma jaqueta rocker.
A chuva aumentava e, já na esquina do prédio em contrução, quase pronto agora, uma tela de proteção gigante e verde jazia em uma caçamba de entulhos, fazendo reverberar novamente a ânsia por ter a arte mais viva em sua vida novamente, ânsia que tivera durante a última semana inteira, quando tudo lhe gritava para saltar daquela vida, para parar de encenar um yuppie durante 8 horas do dia, coisa que lhe desagradava, mas que era seu atual sustento e que pagava parte das despesas de sua filha. Ele não suportava mais aquele emprego e queria voltar à arte em horário integral, mas exatamente naquela noite lhe foi dada a promoção. Era agora supervisor, grande merda, mas uma merda que elevaria seu miserável salário e colocaria seu currículo um degrau acima, dando-lhe mais chances de conseguir algo melhor em uma área que lhe apetecesse. Isto tudo sem falar que na sexta-feira ele completaria 1 ano trabalhando ali, coisa rara em sua bizarra carteira de trabalho, onde havia registro em rádio, lojas, estofaria, multinacional. Sim, ele era um anarquista que trabalhou em uma multinacional, mas ele pensava, e daí? Nunca ligou para os papinhos de ortodoxos de plantão, aqueles que "policiam o movimento". Tocou na primeira banda punk da cidade, quando quase não existia disso por lá, e anos depois era odiado pelos já numerosos punks por causa do seu visual e por não andar com eles.
Mas, voltando à esquina do prédio em construção, no fone de ouvido, a rádio tocava Beautiful Girl, do INXS e ele, inconscientemente e por impulso verbalizou um "STAY WITH ME", sem se tocar naquela hora que o verso anterior dissera "Nicky's on the corner with a black coat on, running from a bad home with some cat inside", o que só se deu conta depois, quando riu da quase coincidência entre a letra da música e sua história com a gata Chic.
Entre a caçamba e o final da rua, ele lembrou da garota do piano e também lembrou de sua ex-namorada, por quem tinha muito apreço, mas que não o compreendia e por isso o odiava por ele ter impedido que os dois levassem uma vida terrível e infeliz. Ele queria muito ser amigo dela, nem sabia se algo mais que isso, pois não pensava no assunto, eram absolutamente incompatíveis, mas ela não queria nem saber de sua existência e acabara com sua auto-estima, coisa que até então ele ainda não havia conseguido recuperar. Mas ele lembrou novamente da garota do piano e de como havia luz no seu sorriso, lembrou da foto em que ela aparece meio Audrey. Sorriu e esqueceu tudo isso, focando no que escreveria ao chegar em casa.
Ele olhou esticadamente para dentro da caçamba, como sempre fez, caçando arte no lixo, mas a chuva o fez seguir adiante, agora mais rápido, porque não queria esquecer as coisas que estavam na cabeça antes que pudesse passar tudo para o papel. E assim o fez, chegou em casa, tomou uma sopa e um café, escreveu parte de seu "livro de retalhos" e só então entregou-se às ocupações medíocres que ultimamente tivera neste horário, não sem antes encher novamente de café a caneca com o rosto de Elvis Presley."
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